A abrir, a flauta, os acordes de nylon da guitarra e os coros fazem a evocação do Prof. Doutor Chico Buarque, em Fâbula Bêbada. A batucada final não deixa qualquer dúvida: a evocação é consciente e o espírito de Chico vai aparecendo, aqui e ali, como luz principal que guia JP na sua primeira aventura a solo. O samba declarado - e aqueles coros Buarqueanos - vem outra vez no apropriadamente chamado Só mais um Samba.
«...Mas, minha geração,
valeu a trapaça,
até teve graça,
tanta conversa,
tanta utopia tonta,
tanto copo
e a comida estava óptima!
O que vamos fazer?»
Assim conclui JP a "radiografia" da sua geração, em 1970 (Retrato). Um retrato amargo e desencantado, como se o último raio de luz resplandecesse do céu e as pessoas se queixassem de ninguém os ter avisado que o dia havia nascido. E o último raio de luz abre apenas um fogacho de esperança («...poderá uma pobre canção contribuir para a tua regeneração ou só te resta morrer desintegrada?»), para logo o escuro céu cair sobre as cabeças e cobrir a terra, adormecendo tudo o que existe de permeio.
JP encarna, em duas músicas, uma personagem feminina. A primeira delas, O Vestido Vermelho, representa a mulher traída, ciumenta do novo amor do seu homem, «um tal jogador de futebol», reagindo, no refrão:
"...pinto o cabelo,
rio-me ao espelho,
ponho o vestido vermelho
à espera de um golo a meu favor".
A segunda personagem feminina encarnada pela voz de JP é Lili. Um jazz fascinante, fumarento, no qual Lili, estrela do palco de uns longínquos anos 30/40 do século passado, vai contando o seu episódio com os homens, em geral, e com um americano louco, em particular. Lili & o Americano (do filme Pele, de Fernando Vendrell) é uma letra que adoro. A profundidade da caracterização do personagem feminino "Lili" só confirma o óbvio: estamos perante um dos melhores letristas da música portuguesa.
Inquietação não é novidade. É a versão do disco - original de José Mário Branco - e já podia ser encontrada na compilação "Uma Outra História". Lindíssima versão, diga-se.
«Tinha-te a ti.
Tinha-te a ti e tinha paz,
num país que era ainda sonho,
onde a tristeza não tinha lugar,
pois era uma canção
que não te ouvi cantar.
No tempo das crianças,
não se pode chorar...»
Estas são as palavras com que JP começa Micamo, depois de um diálogo inicial interessante entre guitarra (motor da música) e trompete. Mais uma vez, música e letra superiormente escrita por JP, com arranjos excelentes.
Capitão Simão é um doce que o autor diz lhe terem posto na sua canção. Uma canção para o seu filho. Mais uma vez, as palavras:
«Ó meu menino, ó meu capitão.
Quando cresceres,
se ficares tonto,
dou-te um desconto,
és cá dos meus!
Estou bem em crer
que o nosso amor vai ser bom.
Já é bom...».
Depois vem o Trovador Entrevado - mais uma canção muito Buarqueana -, o tal que «de tanto sanatório e prisão, lavagem cerebral e televisão (...) devotou-se muito a Deus, que era o nome de seu cão» e que, ao sair de cena cantou:
«Vou ver o meu amor.
Vou no vapor das seis,
para onde o sol se põe»,
deixando «o cão a ladrar aos camiões» (!)...
Se Por Acaso (me vires por aí) é o toque de Pedro Renato (ex-Belle Chase Hotel). Uma música com um estrutura simples, mas eficaz, num diálogo "surdo" e desencontrado entre um homem (na voz de JP) e uma mulher (na voz de Luanda Cozetti), após a ruptura da sua relação. A aspereza pós-separação daquele, em contraste com a saudade no hard feelings desta. Uma balada lindíssima, antes do créditos finais (Werther).
«E ouve-se ao fundo uma triste canção
de paz e amor».
Um cheirinho das canções deste fantástico "1970" pode ser escutado aqui.
Em suma, uma estreia a solo de muito respeito. Principalmente desde "Exílio" (2004), com o Quinteto Tati, que não era novidade a excelente capacidade de Simões para a escrita de canções em português. Em "1970", encontra-se um disco de excelentes canções em português, muito bem escritas por JP Simões (excepto a letra e a música de Inquietação e a música de Se Por Acaso...), arranjadas pelo próprio e com produção do mesmo.
Se é neste patamar que Simões (a solo) arranca, quero ver o que vem a seguir...
«...Mas, minha geração,
valeu a trapaça,
até teve graça,
tanta conversa,
tanta utopia tonta,
tanto copo
e a comida estava óptima!
O que vamos fazer?»
Assim conclui JP a "radiografia" da sua geração, em 1970 (Retrato). Um retrato amargo e desencantado, como se o último raio de luz resplandecesse do céu e as pessoas se queixassem de ninguém os ter avisado que o dia havia nascido. E o último raio de luz abre apenas um fogacho de esperança («...poderá uma pobre canção contribuir para a tua regeneração ou só te resta morrer desintegrada?»), para logo o escuro céu cair sobre as cabeças e cobrir a terra, adormecendo tudo o que existe de permeio.
JP encarna, em duas músicas, uma personagem feminina. A primeira delas, O Vestido Vermelho, representa a mulher traída, ciumenta do novo amor do seu homem, «um tal jogador de futebol», reagindo, no refrão:
"...pinto o cabelo,
rio-me ao espelho,
ponho o vestido vermelho
à espera de um golo a meu favor".
A segunda personagem feminina encarnada pela voz de JP é Lili. Um jazz fascinante, fumarento, no qual Lili, estrela do palco de uns longínquos anos 30/40 do século passado, vai contando o seu episódio com os homens, em geral, e com um americano louco, em particular. Lili & o Americano (do filme Pele, de Fernando Vendrell) é uma letra que adoro. A profundidade da caracterização do personagem feminino "Lili" só confirma o óbvio: estamos perante um dos melhores letristas da música portuguesa.
Inquietação não é novidade. É a versão do disco - original de José Mário Branco - e já podia ser encontrada na compilação "Uma Outra História". Lindíssima versão, diga-se.
«Tinha-te a ti.
Tinha-te a ti e tinha paz,
num país que era ainda sonho,
onde a tristeza não tinha lugar,
pois era uma canção
que não te ouvi cantar.
No tempo das crianças,
não se pode chorar...»
Estas são as palavras com que JP começa Micamo, depois de um diálogo inicial interessante entre guitarra (motor da música) e trompete. Mais uma vez, música e letra superiormente escrita por JP, com arranjos excelentes.
Capitão Simão é um doce que o autor diz lhe terem posto na sua canção. Uma canção para o seu filho. Mais uma vez, as palavras:
«Ó meu menino, ó meu capitão.
Quando cresceres,
se ficares tonto,
dou-te um desconto,
és cá dos meus!
Estou bem em crer
que o nosso amor vai ser bom.
Já é bom...».
Depois vem o Trovador Entrevado - mais uma canção muito Buarqueana -, o tal que «de tanto sanatório e prisão, lavagem cerebral e televisão (...) devotou-se muito a Deus, que era o nome de seu cão» e que, ao sair de cena cantou:
«Vou ver o meu amor.
Vou no vapor das seis,
para onde o sol se põe»,
deixando «o cão a ladrar aos camiões» (!)...
Se Por Acaso (me vires por aí) é o toque de Pedro Renato (ex-Belle Chase Hotel). Uma música com um estrutura simples, mas eficaz, num diálogo "surdo" e desencontrado entre um homem (na voz de JP) e uma mulher (na voz de Luanda Cozetti), após a ruptura da sua relação. A aspereza pós-separação daquele, em contraste com a saudade no hard feelings desta. Uma balada lindíssima, antes do créditos finais (Werther).
«E ouve-se ao fundo uma triste canção
de paz e amor».
Um cheirinho das canções deste fantástico "1970" pode ser escutado aqui.
Em suma, uma estreia a solo de muito respeito. Principalmente desde "Exílio" (2004), com o Quinteto Tati, que não era novidade a excelente capacidade de Simões para a escrita de canções em português. Em "1970", encontra-se um disco de excelentes canções em português, muito bem escritas por JP Simões (excepto a letra e a música de Inquietação e a música de Se Por Acaso...), arranjadas pelo próprio e com produção do mesmo.
Se é neste patamar que Simões (a solo) arranca, quero ver o que vem a seguir...