9.4.08
Novidades - Katzgraben

Artwork: Júlia Rodrigues

[Conheci o Tiago quando ele foi aterrar na mesma casa que eu vivia, em Coimbra, uma casa cuja densidade populacional faria qualquer indiano pensar que vivia no Alentejo e cujo senhorio acreditava que se devia acender a luz no interruptor da mesinha-de-cabeceira e não no de parede porque, num raciocínio lá muito dele - e para ele, sem dúvida, brilhante - no interruptor de parede «a electricidade tinha que 'subir'» ergo «pagava-se mais de luz». Juro.
Disperso-me.
Conheci o Tiago melhor no primeiro dia de aulas, no qual me ficou naturalmente incumbido o papel de "protector" do dito rapaz, tudo resumido e "embrulhadinho" naquele clássico epíteto "praxístico", à moda da Cosa Nostra. O Tiago era um gajo estranho: introspectivo, era aquele tipo de pessoa que, ao primeiro contacto, fazia o Charlie Chaplin parecer ter a proficuidade verbal do ex-Presidente Sampaio.
Para sorte dos meus pecados, tivemos naquele ano dois caloiros que sabiam o que era um compasso de 5/4, vital para poderem entoar, sem falhas, o tema da Missão Impossível. Um deles era o Tiago. Éramos parvos, mas também éramos jovens. Agora só já não sou jovem.
Quando falei um pouco mais com o Tiago, reparei que tinha, entre outros, o "II" dos Led Zeppelin, o "Harvest" do Neil Young e gostava muito do Syd Barrett e dos Pink Floyd («dos anos 60 e 70», vincava!), dos Velvet Underground, etc. Tinha um bandolim, mas não tocava músicas de tunas - abençoado! -, coisa rara na Coimbra de 1996, e tocava guitarra. Tinha uma banda também.
Na faculdade, passámos por irmãos e até pela mesma pessoa - pelo menos, no esgar carburado a a álcool de um certo rapaz que perdi de vista passados 5 minutos, 3 minutos exactos antes de ele próprio se perder de vista dos seus sentidos. Acho que recuperou. Mas, disperso-me.
Com o Tiago aprendi a gostar dos Radiohead, dos quais só conhecia à altura os singles, tomando-os por simples baladeiros - nunca me vou esquecer da primeira vez que ouvi My Iron Lung ou Just. E foi ele que me apresentou ao "O.K. Computer", em primeira mão, o qual gravei numa cassete e o ouvi até a fita se rasgar - o gravador de CD's ainda era ficção científica. Um disco que mudou a minha vida. Nunca me esqueço de entrar no dia seguinte na Faculdade, à qual aparecia de vez em quando para me certificar que a mesma continuava sólida nas suas fundações e, concomitantemente, que a desculpa que dava aos meus pais de que "estava a estudar e a tirar um curso e cenas" tinha chances de ser bem sucedida, e uma amiga me dizer: «estás tão bem disposto hoje, e logo pela manhã...», ao que acho que lhe respondi apenas: «ouvi um disco!». Nunca posso agradecer o suficiente ao Tiago por isso.
Tocámos juntos, numa espécie de proto-banda que, dada a sua escassez de meios, não podia ser reconhecida sequer como de garagem. Tecnicamente talvez tocasse melhor que o Tiago, mas em inspiração e imaginação sentia-me um ogre (o "Tógre"!) ao ver aquela cabeça a funcionar. Tinha um talento inato para os arranjos, para os pormenores, sempre de forma inteligente.
Assisti a concertos da banda dele, os Kafka, que em estranheza, originalidade e inteligência não fariam do checo um cadáver triste. Uma boa banda que, entretanto, acabou.
Eu também acabei. O curso. O Tiago também e a geografia ditou uma separação. Uma e outra vez, quando o soube em Londres.
Há cerca de um ano convenceu-me a pegar no "machado" de novo e a gravar coisas. A compor. Fosse o que fosse. Fazer coisas! Que ele também estava a fazer e que eu não me devia "encostar". Fosse o que fosse!
E chegamos a 2008, ao dia 09 de Abril, e o Tiago, aliás, Esteves, aliás...]

Tiago E., aliás, Katzgraben surge aí com o primeiro trabalho próprio lançado online, "Katzgraben", inserido no Guttapercha, «colectivo artístico com o objectivo de criar uma plataforma experimental entre o trabalho visual e sonoro», como se definem, entre a Barcelos natal e Berlim, com Londres de permeio.
Música que recria ambientes introspectivos, instrumental (com excepção da última faixa), experimental, aqui e ali pós-rock, inteligente e muito aconselhável aos mais audazes, ainda que os afectos me tornem suspeito.

Podem ir a esta página do sítio da Merzbau ouvir e descarregar gratuitamente o disco de Katzgraben, ainda que a editora agradeça qualquer contribuição monetária que se possa fazer à editora.

To Berlin!
Knitting Black Wool II
Out-Of-Date
Katzgraben, "Katzgraben" (2008)

Etiquetas: , , , ,

 
Olavo Lüpia, 9.4.08 | Referências |


5 Comments:


  • At 10 abril, 2008 15:36, Anonymous Anónimo

    Comovente... e um grande abraço ao enorme Esteves, de quem guardo varíadissimas memórias.

    (P.S.: tu por acaso não ficaste com as cassetes de umas gravações que fizemos nesses tempos, pois não? Tinha uma enorme curiosidade em voltar a ouvir isso, depois destes anos todos...)

     
  • At 10 abril, 2008 17:51, Blogger Olavo Lüpia

    caríssimo,
    acho que todos os registos que algumas vez existiram da coisa desapareceram... não fiquei com nada.
    mas se pegar na guitarra ainda me lembro de tudo!
    abraço.

     
  • At 18 abril, 2008 12:58, Blogger João

    Grande Esteves !
    Valentes guitarradas nos telhados de farmácia, com um frio tremendo e muito vinho e cerveja.
    Saudades desses tempos...


    João ( de Fátima )

     
  • At 18 abril, 2008 14:02, Blogger Olavo Lüpia

    o João (de Fátima) era (e ainda é, por certo) um belíssimo pianista e é, na história narrada acima, o "outro caloiro" que sabia o que era um compasso de 5/4!...
    acho que já consegui reunir neste post (e comentários) quase todos os gajos das jams acústicas dos tempos de Coimbra - "telhados de farmácia", pois...

    um abraço, João!

     
  • At 28 abril, 2008 01:41, Blogger Menina Limão

    já fui buscar o álbum. vamos lá ouvi-lo.